O ansiolítico

Há um ou dois dias, ouvia eu, como de costume de passagem, um telejornal matutino da SIC Noticias, quando uma notícia em particular exigiu aos meus sentidos que reclamassem a minha atenção: “A UNICEF decidiu não contratar a publicidade à camisola do Barcelona, mas fazê-lo, em vez disso, ao espaço proporcionado por uma fundação do QATAR, pagando para tal os prometidos 30 Milhões de Euros”.

A UNICEF, aquela entidade que diz que ajuda criancinhas, pagou 30 Milhões de Euros a uma entidade, para lhe fazer publicidade? Quantas criancinhas poderia, a UNICEF, ajudar com esse montante? Em vez de encher os Bolsos de um qualquer clube de futebol ou de uma qualquer fundação interessada na promoção do QATAR?

É claro que o justificativo normal, para esta troca comercial, se encontra no trivial: “esta publicidade permite-nos encaixar mais fundos”.

Mas…estaria em enganado, não seria a UNICEF uma entidade que conta com a solidariedade alheia para prosseguir o seu objectivo? Desde quando é que a Solidariedade é um negócio? Para quem a vende e para quem a compra?

Afinal, aquelas imagens que nos entram pelos olhos adentro do Figo, do Ronaldo, do Messi, que aparecem como solenes e globais embaixadores da UNICEF, tudo isso também não é mais do que um negócio?

Podemos sempre dizer que uma coisa puxa a outra e que, mesmo tratando-se de um negócio a UNICEF, aplica grande parte das suas verbas na prossecução do seu objectivo inicial, o de ajudar crianças necessitadas. E existem muitos negócios que o não fazem. Pois é…digamos que é o melhor dos males, se a tal se pode atribuir essa classificação.

Contudo, é o principio que me magoa, é a subversão da imagem do que se convencionou constituir a UNICEF que me transtorna, é a transformação da solidariedade e da fraternidade, esses princípios universais da humanidade, em negócios, é a sujeição da nossa humanidade ao jogo e ao jugo do dinheiro.

A solidariedade, a fraternidade, a compaixão e a vontade de lutar e denunciar as injustiças deve ser algo nobre, algo que nos orgulhe, algo que esteja associado aos princípios da Civilização contra a Barbárie.

O que seria valoroso era a UNICEF conseguir recolher fundos, não porque a sua imagem é tão forte que ajuda a vender melhor (porque é bom estar-lhes associado), mas porque as entidades e as pessoas o fazem por amor, compaixão e vontade de contribuir para um mundo melhor.

Podem tentar dizer-me que, no fim o resultado é o mesmo. Não, não é! Associar a solidariedade ao negócio é perpetuar o negócio e todos os males que pode trazer. É tão bom a Nike, a Adidas aparecerem associadas à UNICEF quando depois exploram essas mesmas criancinhas que era suposto ajudar, na Índia, na China, no Vietname e onde lhes aprouver.

É tão bom uma Hugo Boss aparecer associada à UNICEF, quando depois vem utilizar peles de animais exóticos, trucidados para tal, para produzir as suas roupas. É tão bom a BP aparecer associada à UNICEF (e quem diz a empresa diz o seu dono) quando depois vem destruir o nosso ambiente promovendo a utilização do petróleo e impedindo ou travando a utilização de energias limpas.

O que era valoroso seria a UNICEF dizer: “Não! Eu tenho uma imagem tão forte que não me quero associar a esse tipo de gente, de hipocrisia, de exploração quer perpetua a pobreza e a injustiça”. Seria esta a minha imagem da UNICEF. A UNICEF tem de ser ajudada por quem, voluntariamente, a quer ajudar. Por quem, moralmente, a pode e deve ajudar.

Caso contrário, mais não é que uma peça da engrenagem da exploração, um obstáculo ao progresso dos seres e dos espíritos. Mais não é que a face da industria da pobreza e da caridadezinha que nunca resolver nada, só perpetua. Mais não é que o instrumento daqueles que, fazendo o mal e promovendo o caos, mesmo assim, necessitam de um ansiolítico que os deixe dormir com a consciência menos pesada. “Exploramos as criancinhas e depois pagamos-lhes a comida”. Aliás, a nossa sociedade, tem muitos exemplos disso mesmo. Sujeita-se um trabalhador ao Stress e depois dá-se-lhe um curso de “Gestão do Stress”. Sujeita-se um trabalhador a movimentos repetitivos e dá-se-lhe uma lição de ginástica de descompressão.

É bom que percebam que quem luta pelo progresso não pode nunca pactuar com aqueles que fomentam a barbárie. O progresso é a luta da civilização e do humanismo contra o caos e a desordem da lei da selva. É isso que o progresso é.


Hugo Dionísio

P.S. Todas as organizações aqui relatadas são-no a título meramente exemplificativo.

2 comentários:

efernandes disse...

Muito Bom Hugo. O que escreves relata a meu ver, exactamente a sociedade hipócrita de hoje.
Como se costuma dizer, não há almoços à borla.
Os exploradores de outros tempos são os mesmos de hoje mas, mais refinados.
Quanto ás Empresas referenciadas, óh Homem...tantas mais que poderias referenciar!

Unknown disse...

São só exemplos, não confirmados, meu caro Egídio. Por isso é que eu digo, a partir do que sabiamente escreves, que estas entidades não estão cá para combater a pobreza...agora retira o que quiseres. Talvez tenham começado por o fazer, mas descaracterizaram-se algures no seu percurso.