CANUDOS QUE NÃO SERVEM PARA GOVERNAR

O peso da carga sobre o lombo...O suor que pinga das fontes para o queixo. As pernas que se arqueiam sem se partirem, tal a carga que as verga mas não parte. O carácter vincado a peso bruto. A força de viver, a necessidade de sobreviver...O anseio pelo fim da jornada. O sentimento que o pôr-do-sol traz a redenção de uma travessia infindável de urros, contracções, arrastamentos e descargas. Descargas de cargas. Descargas de humor. A noite traz a sensação do dever cumprido. O jantar compensa as dores que se espraiam até aos ossos. Mais um dia se passou. Um dia durante o qual só um fio condutor fazia suportar a dor. Mais um dia passado sem partir nem torcer.  Mais um dia passado sem morrer. Ah....haviam de sentir o amargo de boca que se sente quando pensamos que depois de umas breves horas de sono, tudo volta ao início. O esforço, o suor, a náusea e os dentes que rangem de raiva...

Esta poderia ser uma breve descrição de um dia passado por um mineiro, um estivador, carregador, construtor, ou simplesmente...um trabalhador. Esta poderia ser uma breve e superficial descrição de um dia passado por quem, irremediavelmente, é obrigado a vergar a sua vontade em troca de uma simples oportunidade...a oportunidade de sobreviver. É duro, mas é realidade. Verga quem dá o esforço físico, quebra quem vende os valores e as crenças.  

Não deixa de ser fantástico observar que, de entre as antigas corporações, grémios e confrarias, muitas das vezes, as mais organizadas, as mais solidárias, as mais fraternas, eram as que pertenciam aqueles cujas condições de vida, de trabalho e de cultura, mais justificariam o oposto. 

É curioso observar que, muitas vezes, os mais cultos, ensinados e cultivados, eram quem mais se fechava sobre o seu individualismo, a sua indiferença. 

Na idade média, no período renascentista, na Europa cristã, ou no muçulmano Magrebe , uma das corporações mais civilizadas (tomando como traço caracterizador o nosso padrão de civilização) era, precisamente, a corporação dos carregadores dos portos. Casos haviam em que até elegiam, democraticamente, os seus líderes. Casos haviam que dividiam irmãmente os seus rendimentos. Em quase todos os casos, tomavam conta uns dos outros e dos seus. Apoiavam as famílias dos que não resistiam ao  peso do dia-a-dia. 

Pois é. Democracia. Fraternidade. Solidariedade. Igualdade. Justiça social. Existiam por entre uma classe de iletrados, de incultos, de seres que faziam da força bruta a sua força de viver. De seres que eram tão fortes que, entre si, prescindiam da força para dar lugar, não ao racionalismo insensível de uma certa cultura moderna, a sua força dava lugar à emoção, ao amor pelo próximo. O que é que fará de nós realmente humanos? A transformação da força bruta em razão? Muitas vezes (quase sempre?) a razão do mais forte? Ou a transformação da força bruta em emoção? A emoção que leva à compaixão, ao sentimento de injustiça e mais tarde à fraternidade?

Chega a ser, nos dias de hoje, insultuoso como aqueles seres iletrados e incultos, conseguiram tornar as suas corporações, confrarias e grémios, exemplos da afirmação de valores que, ainda hoje, se consideram corolários de uma sociedade avançada. De uma sociedade civilizada e desenvolvida.

Chega a doer na mente a ideia de que valores como a democracia, a fraternidade e a solidariedade nada têm que ver com "intelectualidade", "racionalidade" ou "saber enciclopédico". Estes valores fazem parte de uma sabedoria mais profunda. Mais transcendente. São valores que têm a ver com SENTIMENTO de injustiça, com SENTIMENTO de justiça. 

Daí que, tantas e tantas vezes na história das lutas dos povos e das revoluções, tenham sido os operários, e os trabalhadores mais humildes a, inúmeras vezes, estarem na vanguarda da luta contra a injustiça. A luta pela justiça. Tudo porque têm algo de muito forte em comum...o SENTIMENTO de que são irmãos, CAMARADAS, na injustiça, no sofrimento, na dor...

O conhecimento é importante? Sem dúvida! O saber e cultura também! Mas como elementos de fundamentação, de agregação, de explicação e de aprofundamento. Como pontos de partida para a luta, o sentimento é mais importante do que a razão.

Tudo isto para dizer que para bem governar não é preciso ser doutor, cientista ou engenheiro. Para bem governar é preciso ter sentimento de justiça. Ter sentido de equidade. Ter coragem e carácter. Ter compaixão e respeito pelas dificuldades do próximo. Sentir-se igual aos outros. Sentir-se uma parte e não o todo. Sentir-se mais um e não o único. Saber servir e não ser servido. Para isto...não é preciso curso, licenciatura, mestrado ou doutoramento. A única qualificação necessária é a da escola da vida.

Daí que, Lula, um dos melhores presidentes do nosso tempo, era um simples operário. Teve de aprender? Teve de conhecer? Sem dúvida. Mas o que o qualificou não foi esse conhecimento. Foi a sua identidade de classe. 

Os nossos desgovernantezitos e desgovernados ministros e outros que tais, andam por aí às cabeçadas só para terem um canudo que diga que são licenciados em qualquer coisa esquisita que ninguém sabe o que é, nem para o que é que serve. Para governar não serve de certeza. Porque não são os canudos que governam. São as pessoas. E não se governam os números e as letras. Governam-se os iguais. É isso que eles se esquecem. Temos de os lembrar!

O saber está em saber que a justiça não se apanha nem se compra. A justiça pratica-se. Com as nossas mãos.

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