A
realidade apresentada e a realidade concreta
Toda
esta questão Ucraniana tem-me forçado a uma reflexão profunda. Uma reflexão
quanto às nossas capacidades de descodificação da realidade concreta, por entre
uma imensidão de informações e contra-informações, de carácter propagandístico
ou não, das quais nem sempre – ou quase nunca – é possível identificar os seus
emissores originários e as suas reais intenções.
A
grande conclusão que retiro deste emaranhado de verdades difusas e incoerentes é
a seguinte: a realidade que nos é apresentada – não confundir com a realidade
concreta e objectiva – é cada vez mais complexa.
Perante
tal complexidade surge uma questão de grande pertinência: como não nos
perdermos no meio de tanta confusão? Em que é que devemos de acreditar? Em
quem?
A
importância dos princípios
As
questões levantadas não possuem uma resposta tão objectiva e final quanto desejável.
Contudo, julgo que a resposta está mais no plano dos princípios. Para não nos
perdermos teremos de remontar aos princípios.
Expliquemos
melhor esta ideia, levantando uma outra questão: porque é que na idade média a
humanidade encontrou a resposta em deus? Talvez porque, perante uma realidade
que mudava todos os dias e que se caracterizava pela instabilidade, a crença em
princípios estáveis e imutáveis (mesmo que morais, emocionais…) ajudava a
encontrar um caminho por entre toda a confusão.
A
mudança constante da realidade é uma característica das idades médias
Ora,
a ideia de que, nunca como antes, a realidade quotidiana se caracteriza pela
constante mudança, é falsa. Falsa? Sim falsa. Basta ler qualquer livro de história
da idade média para perceber que a instabilidade era “a característica” dessa
sociedade. O poder, as condições materiais de vida, os governantes, as
fronteiras, as famílias, os amigos, mudavam a uma velocidade impressionante. A
ausência de lei, de direito, de ética no plano político, fazia com que uma
pessoa do povo sentisse uma insegurança tremenda quanto ao futuro. De repente,
uma família com vários filhos, com uma vida estável, podia, perante uma guerra,
uma desordem, um desmando ou abuso de poder, ficar sem nada.
Qual
a diferença para hoje? A informação. É que hoje vivemos na sociedade da
informação. E perante o excesso de informação, sentimo-nos ainda mais perdidos,
principalmente quando, ao contrário do que se passava na idade média, se
anunciou a morte de deus, das religiões e, ainda mais importante, numa
perspectiva civilizacional, das ideologias politicas. Ou seja, aquilo que o
homem medieval tinha como imutável (a religião), o homem pós moderno não tem.
Sente-se ainda mais perdido.
Hoje
muda tudo muito depressa? Há mil anos atrás também!
Esta
ideia de instabilidade com que nos atingiram, contrária às enormes conquistas
civilizacionais conseguidas durante o século XX, representa a prova maior de
que entrámos, profundamente, numa idade média.
Após
um século de avanços enormes, no direito, na organização do estado, na
economia, na igualdade de oportunidades, na segurança social e na estabilidade da
vida, o que permitiu planear o futuro e apostar na evolução individual e
colectiva, com benefícios inquantificáveis para toda a humanidade, eis que se
nos apresenta, como novo e moderno – qual destruição de Roma pelos bárbaros –
um estado de instabilidade, que nos é vendido como inevitável e inexorável.
Provando
a história que não existem inevitabilidades, que a idade média teve fim e que a
resposta para a barbárie é a civilização, a verdade é que a barbárie volta
sempre. De novo se anunciam as guerras territoriais, as guerras pela riqueza,
as corridas ao armamento e a exploração do povo como forma de obtenção de
riqueza e de submissão aos interesses das classes sociais dominantes.
A
instabilidade apresentada como inevitável
nada
mais é do que um instrumento de domínio social
De
novo se anuncia a ganância do dinheiro como a fonte de todos os males,
substituindo-se, apenas, o anterior papel da igreja. Actualmente, nesta idade média,
são os mercados que representam o poder omnipresente e omnipotente que
representava deus, na idade média.
Se
na idade média não se podia provocar a ira divina, sob pena das maiores misérias,
no século XXI, o século medieval pós moderno e pós civilizacional, não podemos
provocar a ira dos mercados. Resultado? Todas as dimensões da nossa existência
(trabalho, família, consumo, estado…) têm de funcionar em prol e no interesse
dos “mercados”. Senão, as maiores misérias se anunciam.
Neste
ponto surge mais um paralelo histórico. Se antes a vida tinha de se acomodar
aos trâmites da igreja para aplacar a ira divina, agora tem de se acomodar aos
mercados, senão…Misérias inimagináveis atingem os países e a humanidade.
Tanto
numa, como noutra situação, a acomodação da vida aos interesses superiores de
um ente supra material, não liberta ninguém da miséria. Ou seja, sê miserável
porque senão, ficas miserável.
A
história tende a repetir-se, porque os actores são sempre os mesmos
Na
idade média, dizia-se ao povo que tinha de viver como Cristo enquanto o clero e
a nobreza viviam no fausto. O povo era explorado e não podia enriquecer até
porque, se tal acontecesse, castigos tenebrosos recairiam sobre os pecadores. Então,
miseráveis tinham de continuar para que não fossem vítimas de uma miséria maior
(como se tal fosse possível).
Actualmente
dizem-nos, temos de apertar o cinto, temos de levar com a austeridade e temos
de empobrecer. Se não nos tornarmos miseráveis os mercados atiram-nos com uma
miséria ainda maior. Enquanto ficamos pobres para não ficarmos pobres, as
classes dominantes (clero, nobreza, alta burguesia) andam no fausto como
andavam na idade média anterior. E nós temos de levar com isto porque senão, ái
de quem levar com ira dos mercados e dos investidores…
Hei-de
voltar a este tema outra vez, contudo, julgo que esta comparação histórica, a
meu ver, nada exagerada e absolutamente real, nos permite constatar o quão
acelerado está o processo de “medievalização” das nossas sociedades contemporâneas.
Ainda não chegámos ao extremo? Claro que não. Ainda estamos no princípio. Mas o sentido é claramente descendente e senão
o travarmos, chegamos ao extremo, com toda a certeza.
Reafirmar
princípios experimentados para travar a “medievalização”
Daí
que eu volte ao início, acabando como comecei. Temos de remontar aos princípios
éticos, filosóficos, ideológicos e científicos. Não nos podemos perder no meio
da informação difusa que nos enviam. O sistema dominante tem como objectivo a
corporização da mesma ideia reaccionária que tinha a igreja nos tempos da
inquisição. A ideia de que se não nos submetermos, estaremos desprotegidos face
à ira de um ente superior e inatingível. Antes era o Deus católico, judaico ou
muçulmano, hoje são os mercados. As classes dominantes sempre encontraram
formas de domínio e exploração através do medo e da sensação de insegurança. A
sua grande arma sempre foi essa, o medo do amanhã.
A
grande arma de domínio é o medo do futuro
A
solução, mais uma vez, é percebermos quem fomos o que tivemos e o que deveríamos
ser. A solução é não termos medo do amanhã, porque o amanhã pode e deve ser
construído por todos e cada um de nós. O futuro é o que nós quisermos que seja.
Assim,
se os últimos 50 anos do século XX nos permitiram construir as sociedades mais
justas e evoluídas de sempre, porquê abandonar esse processo? Porquê desistir
dele? Porquê desistir dos princípios e das ideologias libertárias e humanistas
que os corporizaram?
O
tempo é de reafirmar como nunca esses princípios. O tempo é de dizer à reacção
que não queremos o seu domínio. O tempo é de dizer que o caminho se faz para a
frente e não para trás e em nenhum momento o atraso poderá ser visto como uma
coisa boa ou desejável. O tempo é de dizer que esta estratégia de dominação
pelo medo e pela instabilidade é, por demais, conhecida e indesejada. O tempo é
de lutar pelo amanhã e não de ter medo dele. O tempo é nosso, é de todos os que
não se acomodam.
Não
prescindam dos princípios que nos deram a sociedade mais evoluída de sempre. Não
prescindam dos princípios que obrigaram o capital a aplacar a sua sede sanguinária
de riqueza e poder. Não permitam que apresentem ideais libertários como
ultrapassados.
Um
ideal progressista, humanista e libertário nunca é ultrapassado. Nunca o
poderia ser.
Não prescindam
a esperança num futuro melhor, senão, não vos sobra nada porque viver e lutar.
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